Dia chuvoso. A barriga roncou tanto que assustou Pink, o ratinho que de vez em quando aparece e me faz companhia. Ele deve ter pensado que havia comida. Já o surpreendi outro dia levando alguns dos meus cream-crackers. Eu o perdoei, sou assim, não guardo rancor. Aliás, ele é um bom ouvinte. Pobre Pink. Ele se foi, me deixando sozinho naquela manhã.
Foi quando ela apareceu. Uma silhueta fina, tanto no físico quanto no jurídico. Bonita e elegante, usava um sobretudo vermelho com algumas gotas de água escorrendo pelo tecido que parecia muito caro. Muito mesmo. Eu fiquei estarrecido. Mais pela beleza, claro, mas também por ela aparecer na minha porta em um dia de chuva. Até o Pink voltou para dar uma olhadela na nova cliente. Eu não costumo receber ninguém em dias chuvosos. E ultimamente, nem em dias ensolarados.
- Ted Rocky, o detetive?
- Sim, madame, Ted Rocky detetive particular em carne e osso, mais osso do que carne! Em que posso ser útil?
- Meu marido...
- Ele desapareceu?
- Não, ele apareceu!
- Como é?
- Meu marido, dado como morto há seis meses, apareceu do nada!
- Veja senhora, eu conheço alguns profissionais da área mística, posso indicar alguns.
- Não, o senhor não está entendendo. Ele apareceu em carne e osso!
- Huum...
- Eu te procurei para manter a discrição. Meu marido é conhecido. Trata-se do empresário Nico Brasília.
- O dono das Casas Brasília?
- Esse mesmo.
- Sim, eu me lembro do caso. Foi notícia na TV. Nico Brasília, um empresário bem sucedido no ramo de comércio varejista de eletroeletrônicos e variedades. Ele foi até a zona franca de Manaus para inaugurar uma nova loja de sua rede e algo aconteceu com seu avião que caiu na floresta amazônica. Depois de três dias de busca foi noticiado pela imprensa que ele morreu. Estou certo?
- Sim, esta é a versão oficial. Acontece que o corpo nunca foi encontrado. Veja senhor detetive, sempre fui uma esposa dedicada. Dediquei minha vida ao Nico e se passaram seis meses desde sua "morte". Ele sumiu do mapa, não deu nenhuma notícia para mim. Eu segui minha vida, toquei as empresas, ganhei meu dinheiro, gastei o dinheiro...
Meu faro atômico detectou onde aquela conversa iria chegar. A esposa gastou o dinheiro da empresa, encontrou um novo namorado, afinal o marido foi dado como morto. E agora ele aparece do nada reivindicando as suas posses.
- Bem, senhora...?
- Anabelle Teixeira.
Ouvi o nome e hesitei por um momento. Percebendo minha hesitação, ela continuou a falar.
- Voltei a usar o meu nome de solteira.
Na verdade hesitei por causa do primeiro nome. Lembrei-me de um filme que assisti sobre uma tal boneca Anabelle. Não recomendo assistir a este filme sozinho. Rocky. Ted Rocky, detetive particular. Avesso ao terror.
- Ok, senhora Teixeira. Posso supor que você quer que eu investigue seu marido para que você garanta o direito das empresas e posses que ele reivindica?
- Sim e não, senhor detetive. Quero que você investigue meu marido sim, mas porque ele quer doar todos os nossos bens para a caridade.
- Oi?
-Sim, isso mesmo. Meu marido voltou da Amazônia piradinho. Alguém deve estar por trás disso. Ele deve ter uma amante e quer tirar tudo de mim! Preciso da sua ajuda, senhor Ted Rocky!
- Ok, senhora. Você terá a expertise de Ted Rocky ao seu serviço. Começarei imediatamente. Você sabe onde eu posso encontrar seu ex falecido marido?
-Ele não se encontra em casa. Vou deixar o número do meu telefone com você. Preciso ir!
Ainda chovia no final daquela manhã. Pink seguiu a moça, talvez tenha sentido o cheiro de comida fina. Eu também a seguiria, mas agora o dever me chama. Rocky. Ted Rocky, detetive particular. Com o seu mais novo caso inusitado. O marido aparecido.
Pesquisei sobre meu alvo na internet usando o meu smartphone. Meu pacote de dados estava como meu pacote de biscoitos. Quase no fim. Por sorte, consegui informações sobre Nico Brasília. Foi bem rápido, na verdade. As notícias nas redes sociais são quase em tempo real e já apontava onde aquela figura pública estava. Em um vídeo da rede social do Jornal Matinal (o JMN está diversificando os meios de divulgação), Nico Brasília estava no coreto da praça central vestido de maneira casual e discursando para meia dúzia de gatos pingados. Ele dizia algo sobre desapego material e transcendência.
Procurei meu guarda-chuva. Encontrei, mas estava despinguelado. Vesti meu casaco de pano grosso para enfrentar a rua molhada. A chuva deu uma amainada.
Nico Brasília ainda estava na praça central. Eu me aproximei do coreto para me enturmar na turma de gatos pingados.
-Ele é o Nico Brasília, o empresário que foi dado como morto? - perguntei a um dos gatos que vestia um casaco amarelo e azul e parecia o responsável pelo vídeo que vi na rede.
-Sim, ele mesmo. O avião caiu, mas ele não morreu. Ele disse que passou os últimos seis meses com uma tribo da Amazônia onde foi tratado e despertou para consciência. Está há meia hora discursando sobre as desigualdades sociais e a prisão egóica da humanidade.
-Ele pirou?
-Olha, ele não me parece pirado. O discurso dele faz sentido. É como se tivesse nascido outra vez!
Eu me aproximei de Nico Brasília para tentar um contato.
-Olá, senhor Brasília! Prazer conversar com o senhor! Uma bela história a sua.
-Sim, meu jovem. Eu tive uma bela oportunidade. Gostaria de passar para todos vocês o que eu vi e senti. A insanidade coletiva que é o ego da humanidade. Tudo é transitório e impermanente, meu jovem. Foi isso que eu escutei e aprendi na tribo dos meus amigos na Amazônia. A natureza é a resposta.
-Uau! Profundo!
-Por isso eu voltei, nascido outra vez, apenas como Nico. Quero me desfazer da maioria dos meus bens materiais, compartilhar com os outros e viver com o suficiente, sem ostentação. As minhas empresas a partir de agora tem o propósito de humanizar outras empresas.
-Uau de novo! E a sua família, o que diz sobre isso?
-Ainda não entenderam. Minha esposa gosta de ostentar o luxo, porém não pretendo deixá-la sem nada. Pretendo ajudá-la. Se ela quiser.
Não sei dizer como, mas aquele homem me convenceu. Deu até vontade de trabalhar com ele. Passei as duas semanas posteriores investigando Nico Brasília. Nesse tempo, as redes de lojas “Casas Brasília” passaram a se chamar “Casas Amazônia”. O nome Brasília não combina com o propósito atual da empresa. As Casas Amazônia eram agora empresas multimercado que atuavam nos segmentos de produtos naturais, dedicada ao desenvolvimento sustentável e preservação do meio ambiente; de energia renovável, de gestão empresarial humanizada. Tudo focado na ideia da economia cíclica. Nenhum funcionário das antigas lojas foi demitido, todos se adaptaram à nova filosofia.
Minha cliente, Anabelle Teixeira, passou as duas semanas me cobrando se eu tinha descoberto algo sobre a amante do Nico Brasília. Não havia amante, pelo que descobri, havia apenas mudança de consciência mesmo. A senhora Anabelle ficou tão assustadora quanto a boneca do filme da última vez que a vi. Não me pagou, obviamente. O Pink voltou também, preferiu a minha companhia e a escassez de biscoitos.
No fim deste caso, apesar das mãos abanando, senti-me bem. De alguma maneira, fui pago com a esperança de que podemos melhorar um pouco a humanidade com o que estiver ao alcance de cada um de nós para melhorar a si mesmo. Rocky. Ted Rocky, detetive particular e aspirante a filósofo.
Fiz amizade com o Mestre Nico, eu o chamo assim agora. E também consegui abrir um crediário nas Casas Amazônia. Não fico sem o meu chá de Jasmim!
Luís Fernando Gurgel e Souza, sobre histórias do cotidiano, fábulas, crônicas futebolísticas e emoções de cada um. luisfgurgel11@gmail.com
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