Mesmo inseridos no regime especial de tributação previsto na reforma tributária, com redução de 60% dos tributos, representantes do setor da saúde defendem mudanças no projeto de lei complementar que regulamenta a reforma tributária ( PLP 68/2024 ). Esse posicionamento foi apresentado nesta quinta-feira (12), durante mais uma roda de debates promovida pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) .
Representantes dos serviços de saúde afirmaram que, caso o texto seja aprovado da forma como se encontra, a atividade terá um aumento de tributação geral em torno de 27%. Já os representantes do sistema educacional, apesar de reconhecerem o texto como “equilibrado” e “justo”, alertaram para o risco de um aumento da tributação para empresas que concedem bolsas de estudos aos empregados.
A reforma tributária foi promulgada em dezembro de 2023, com a Emenda Constitucional 132 . Ela trata da criação de um novo sistema de tributos sobre o consumo: PIS, Cofins, IPI, ISS e ICMS serão substituídos pelo Imposto sobre Valor Agregado, o IVA. Este, por sua vez, será dividido em dois: a Contribuição sobre Bens e Serviços - CBS (que substituirá os tributos federais) e o Imposto sobre Bens e Serviços - IBS (que substituirá os tributos estaduais e municipais). Além disso, será criado o Imposto Seletivo.
O PLP 68/2024, que regulamenta a reforma tributária, trata da definição das alíquotas dos tributos e quais bens e serviços estarão isentos. O projeto já foi aprovado na Câmara dos Deputados e atualmente está em tramitação em um dos colegiados do Senado: a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) .
Com a reforma, tanto o setor de educação quanto o de saúde foram inseridos em um regime especial, com alíquota reduzida em 60%. Mas, especialmente para os representantes da saúde, o texto da regulamentação, da forma como está, acabou retirando a essência inicial da matéria, que era a de preservar a neutralidade e a não comutatividade do sistema tributário brasileiro.
De acordo com o representante da Confederação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos, Renato Nunes, o setor de serviços de saúde tem um resíduo tributário, atualmente, de 4,4% sobre a receita bruta. Com a regulamentação da reforma, prevalecendo uma alíquota de 27,97% (alíquota prevista pelo Ministério da Fazenda após a aprovação do texto na Câmara), ele afirma que haveria um aumento para 5,5%, resultando num aumento de tributação geral para o setor de 27% — números que impressionaram os senadores.
Para o senador Izalci Lucas (PL-DF), é preciso rever o texto e buscar sensibilizar o relator da matéria, senador Eduardo Braga (MDB-AM), no sentido de evitar desequilíbrios e injustiças.
— Foi dito aqui, por todos, que a gente vai ter de ajustar para não ter aumento significativo, porque aumento haverá com certeza, mas tem de amenizar, com essas ponderações que foram feitas aqui — afirmou, Izalci, que preside o grupo de trabalho sobre reforma tributária instituído pela CAE.
Na avaliação dos representantes do setor de operadoras de planos de saúde, em especial os que atuam em cooperativas, o texto do projeto, da forma como está, vai aumentar o custo dos convênios para as empresas que oferecem o benefício aos trabalhadores. Isso porque a proposta prevê que as empresas não poderão aproveitar o crédito tributário gerado na contratação de planos de saúde para funcionários.
A incidência do IVA nesse setor pode gerar efeitos diferentes em cada modelo de negócio, já que a atividade é formada por empresas de diferentes perfis. Há no mercado seguradoras, cooperativas médicas, medicinas de grupo, operadoras de autogestão e filantrópicas.
Para os planos e seguros de saúde, a alíquota será a reduzida em 60%. Essa alíquota incidirá sobre a receita dos serviços (prêmios, mensalidades e participações) e a receita financeira das reservas técnicas, deduzidos os pagamentos de indenizações ou serviços de saúde (pagos ao usuário ou a outro plano se houver cessão de responsabilidade), taxas pagas a administradoras de benefícios e as comissões de corretores. Reembolsos não pagam tributo e também não geram créditos.
Para as cooperativas de saúde, a dedução das indenizações, antes proibida, passará a ser de 50% dos valores quando pagos aos associados, mesmo que a operação seja beneficiada por redução de alíquotas estabelecida em regime específico para todos os tipos de cooperativas. No entanto, o setor defende 100% de dedução.
A consultora tributária da Unimed do Brasil, Letícia Fernandes de Barros, argumentouque o projeto torna a tributação sobre os planos de saúde essencialmente cumulativa para quem contrata o benefício, contrariando o objetivo da neutralidade e da não comulatividade que o Executivo defendeu quando apresentou a proposta de reforma. Segundo a consultora, a operadora possui mais de 20 milhões de clientes e é geradora de quase 142 mil empregos diretos, atuando em regime de cooperativismo.
— Se eu também sou cooperativa e faço as deduções que me são permitidas, e, portanto, fico com a limitação dos 50% [trava de 50% para deduções do IR] que se pretende, eu passo a ter um aumento tributário de 147%. O meu custo tributário total passa a ser de R$ 45 milhões. Por quê? Porque eu só posso deduzir 50% do que foi repassado ao cooperado. Quando eu penso nisso, incluindo o restante do custo tributário, e é necessário que se faça isso, porque a Constituição traz a necessidade de que a sua competitividade seja resguardada, quando eu incluo aqui que o meu cooperado, ao contrário do prestador de serviço das demais operadoras, que normalmente é pessoa jurídica, se submete a uma tributação de 27,5% de Imposto de Renda, os números ficam ainda mais gritantes.
Segundo os representantes do setor de saúde, o PLP 68/2024 aumenta a carga tributária para as operadoras ao determinar a tributação das receitas financeiras das reservas técnicas, aplicações obrigatórias instituídas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) como garantia da operação, e ao não prever a dedução, da base de cálculo do imposto, dos valores destinados a essas reservas.
O projeto ainda é visto como prejudicial ao setor de cooperativas por vedar que cooperativas médicas que operam planos de saúde, como é o caso da Unimed, deduzam na integralidade da base de cálculo do imposto os repasses de honorários aos médicos cooperados, caso optem também pelo regime das sociedades cooperativas, que é próprio do modelo. Uma diferenciação considerada injusta para os representantes das cooperativas de planos de saúde, já que o texto permite a dedução dos custos médicos para as demais operadoras.
Para eles, o dispositivo cria um custo significativo para compatibilizar o regime econômico de operadora com o regime próprio das cooperativas. Para o consultor jurídico da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), João Caetano Muzzi Filho, o texto, da forma como está, torna os planos das cooperativas mais caros do que os das operadoras comerciais.
— O projeto comete uma distorção grave. Pior do que ter um aumento de tributo, é persistir numa sobrecarga desigual na cadeia do serviço para players diferentes. (…) A cooperativa não quer favor, não quer benefício; ela quer a garantia da sua competitividade no ambiente econômico em que ela atua — afirmou ele.
Outra preocupação manifestada pelo setor de saúde se relaciona à tributação dos dispositivos hospitalares e médicos, como próteses e aparelhos de raio-x. Assim como a cadeia dos serviços de saúde, a Emenda Constitucional 132 assegurou alíquota reduzida de 60% para esses itens. No entanto, o projeto em tramitação (o PLP 68/2024) separa os itens por listas. Ou seja, nem todos os dispositivos terão a redução prevista na emenda.
Para os representantes dessa área, o Senado precisa garantir que todos os dispositivos médicos e hospitalares estejam cobertos pela taxação reduzida, além de garantir que as operações intermediárias estejam livres de bitributação.
Consultora tributária da Aliança Brasileira da Indústria Inovadora em Saúde (Abiis), Hella Gottschefsky, destacou essa preocupação:
— Porque vejam: vai ser a Unimed, vai ser a Santa Casa, vai ser o hospital da nossa cidade que vai adquirir esse dispositivo médico 100% tributado. Nós estamos falando de o consumo hospitalar ser 100% tributado e não poder, efetivamente, deduzir todo o custo que haverá com essa aquisição. Em última instância, nós, cidadãos, pessoas físicas, vamos sofrer um impacto extremamente elevado em função dessa distorção em que o produto é tributado em 100%, mas o serviço de saúde, o serviço hospitalar, vai ter uma redução de 60% da suas alíquotas —enfatizou Hella Gottschefsky.
Os representantes do setor também sugeriram que o PLP 68/2024 garanta 100% de imunidade tributária aos produtos adquiridos pela Sistema Único de Saúde (SUS), quando comprados por meio da cadeia local. Para eles, isso seria um incentivo à inovação e às pesquisa nacionais.
— Essa ação contribuirá com a ação de 175 milhões de brasileiros que hoje têm a saúde pública como único espaço de tratamento da saúde e também estabelecerá a isonomia tributária para os fabricantes locais — defendeu Márcio Bósio, diretor institucional da Associação Brasileira da Indústria de Dispositivos Médicos (Abimo).
Apesar de estarem atendidos com a redução de 60% prevista na reforma tributária, os representantes da indústria de produtos farmacêuticos avalia que o setor, assim como todo o sistema de saúde, deveria ser beneficiado com 100% de isenção do IVA. Segundo eles, a reforma tributária deveria ser construída e aprovada com o objetivo de desenvolver a indústria e os serviços de saúde no país, mantendo como foco de preocupação o valor final do serviço ofertado ao consumidor (que não recorre ao produto ou ao atendimento por opção, mas por necessidade).
— A redução de 60% foi muito boa, mas mesmo assim nós continuaremos entre os quatro países com a maior carga [tributária] sobre medicamentos. Na maioria dos países desenvolvidos [a carga tributária] é zero. E a gente tem de brigar. Esta casa tem de defender o zero. Para quê? Para que a gente amplie a saúde e reduza o custo do SUS — disse Nelson Mussolini, presidente-executivo do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos.
O PLP 68/2024 traz entre seus dispositivos a inclusão de todos os medicamentos em alíquotas reduzidas, com desconto de 60% ou zerada. Aqueles que já estavam na alíquota zero, cerca de 383 medicamentos, para tratamentos mais graves e que exigem receita médica, permanecem com isenção total de impostos.
Diogo Penha Soares, representante do Ministério da Saúde, destacou o que chamou de "linhas de cuidado":
— Nós temos defendido a criação das linhas de cuidado, em que, estando a finalidade daquele medicamento aderida a uma linha de cuidado, ele está isento do IVA: medicamentos para cuidar de doenças raras, negligenciadas, vacinas e soros, oncologia, diabetes, DSTs e aids, entre outros.
Já o representante da Confederação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos, Renato Nunes, defendeu a manutenção da imunidade tributária para esse setor, assegurada na Constituição. Mas ele pediu a derrubada do dispositivo do PLP 68/2024 que nega a tomada dos créditos do IBS e da CBS por entidades filantrópicas.
— Por qual motivo uma Santa Casa, que exerce uma atividade fundamental para a população que ela assiste, não vai também manter o crédito? — questionou Renato Nunes, lembrando que serviços como os de TV aberta serão beneficiados pela tomada de créditos.
Diogo Penha Soares, do Ministério da Saúde, reconheceu a importância das santas casas e das identidades filantrópicas. Segundo ele, elas são hoje responsáveis por 60% da produção do Sistema Único de Saúde, seja em atendimento ambulatorial ou hospitalar, de média e alta complexidade. Para ele, é preciso trabalhar no Senado para se garantir a desoneração do orçamento da saúde. Soares também disse que a aquisição de dispositivos hospitalares pelas unidades filantrópicas precisam estar nesse marco legal.
— O orçamento da saúde é limitado e tem um crescimento limitado ao longo dos anos. Então, tudo que a gente consegue desonerar em saúde vira investimento e vira geração de valor e de qualidade de vida para a população. Quando a gente está desonerando a aquisição de equipamentos, por exemplo, para santas casas, nós estamos indiretamente desonerando o orçamento do SUS. É o SUS que compra esses serviços. Não é o SUS que está comprando diretamente os equipamentos, então não é ele que está sendo desonerado. Mas, se a compra da Santa Casa for onerada, o orçamento do SUS é onerado também.
Já no entendimento dos representantes da educação, o PLP 68/2024 se apresenta como um conjunto equilibrado para o setor, principalmente no que se refere às unidades educacionais com fins lucrativos. Apesar disso, profissionais ligados a unidades que prestam serviços filantrópicos criticaram a não tomada dos créditos do IBS e da CBS por essas entidades. Os participantes do debate também apontaram uma possível insegurança jurídica em relação à tributação das bolsas de estudos fornecidas por empresas a empregados. Ele defenderam a manutenção explícita da isenção desse tributo.
— A Câmara dos Deputados trouxe algo dizendo que as bolsas de estudo para empregados não seriam tributadas, o que trouxe um alívio, mas se colocou lá: "desde que esse benefício seja oferecido a todos os empregados, autorizada a diferenciação em favor dos empregados de menor renda...". Aí você começa a criar um conjunto de inseguranças que desestimula. Às vezes, uma escola que poderia dar menos bolsas, enfim, mas daria algumas bolsas, vai acabar sendo desestimulada — ressaltou Emerson Casali, consultor daAssociação Brasileira de Academias (Acad Brasil).
Já na opinião da presidente da Associação das Universidades Particulares (Anup), Elizabeth Guedes, é preciso refazer os cálculos e observar se, com a nova previsão do IVA de quase 27%, divulgado pelo próprio Ministério da Fazenda, o regime diferenciado aplicado ao setor da educação ainda reflete um sistema com base na neutralidade e na não comutatividade.
— O redutor de 60% era para uma alíquota de 24%. Então, o Ministério da Fazenda já está falando de 26%, e, quando ele fala em 26%, 60% já não é neutralidade tributária. Nós vamos pagar mais do que a gente pretendia. Perdão, não é porque a gente pretendia, mas é porque a gente paga hoje. A nossa intenção nunca foi reduzir a nossa carga tributária, mas pagar o que pagávamos sem aumento, apesar da OCDE, que coloca alíquota zero ou alíquotas muito reduzidas para saúde e educação.
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